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Projeto para colorir o hospital psiquiátrico
Pintando os muros do estigma: como a arte mudou a rotina de um hospital psiquiátrico
Alessandra Dantas
De Belo Horizonte para a BBC Brasil
21 maio 2017
“Ficou doido? Vou te mandar para o Galba!” “Essa sua ideia é digna do Galba.” Tais frases poderiam facilmente ser ouvidas em Belo Horizonte, onde o hospital psiquiátrico Galba Velloso, aberto em 1961, se tornou sinônimo de transtorno mental.
No passado, o hospital reproduzia o modelo que tratava a loucura de forma excludente – e incentivava comentários jocosos como esses. Hoje, a instituição procura humanizar o tratamento dos pacientes, em linha com as mudanças na política de saúde mental dos últimos 25 anos.
Na semana passada, por exemplo, uma das alas do local foi tomada durante sete dias por latas de tinta, sprays e artistas de rua pendurados em andaimes de até seis metros. Era mais uma etapa de um projeto diferente: uma residência artística dentro de um hospital psiquiátrico público.
O alvo foram os muros da instituição, símbolos da velha segregação entre loucura e sanidade. Altas e desbotadas, com aspecto que evoca vigilância e aprisionamento, as paredes viraram suporte para a arte.
Fazendo acontecer
O desafio era arrecadar o dinheiro necessário à empreitada. Um ano, rifas, doações e uma vaquinha virtual entre parentes depois, havia R$ 5 mil em caixa para sprays, rolos, bandejas e latas de tinta.
Para assumir a tarefa, Cavalcante convidou dez artistas de rua de diferentes gerações. Um dos critérios de escolha, diz, foi a sensibilidade diante do espaço. “São artistas que trabalham na rua e escutam o espaço, não só intervêm nele.”
Por uma semana, a equipe se dedicou a dar uma nova cara aos paredões do pátio da enfermaria feminina de média permanência, que acolhe mulheres em situação de crise. E em plena interação com as pacientes.
“Elas vinham todas alegres, gritando, falando. Eu refletia sobre isso: elas quase não veem ninguém diferente, e quando veem querem fazer amizade. E conseguimos fazer várias amizades”, conta o muralista e ilustrador Thiago Mazza, de 32 anos.
Sintonia
A recepção das pacientes foi bastante positiva, conta a psicóloga Cláudia Apgaua, de 48 anos, gerente assistencial do hospital. “De início já houve o reconhecimento de que acontecia aqui alguma coisa para o bem de todos. Elas começaram a pedir papel e telas para pintar, e uma delas fez um desenho inspirado numa obra que via e entregou ao artista.”
A música embalava os trabalhos e ajudava a conectar artistas e pacientes. “Houve um momento em que a Luciana, paciente reconhecida por um dos artistas ‘aquela que canta e gosta de música’, começou a dançar. Quando vi, o artista dançava com ela em uma coreografia incrivelmente bela – os dois estavam em sintonia”, diz Apgaua.
O período médio de internação no Galba Velloso é de 20 dias, mas há casos de pessoas que ficam por mais tempo. Pacientes chegam de todo o Estado, por demanda familiar ou voluntária, encaminhamentos via serviço de saúde e internação compulsória por determinação judicial.
Cenário do projeto de arte, o pátio da enfermaria feminina fica aberto todos os dias, fechando apenas durante o almoço e o jantar. Ali há 23 dos 119 leitos do hospital. A taxa média mensal de ocupação dos leitos sempre supera 90%.
Célia Alves, de 50 anos, é uma das pessoas atendidas. Ela gosta de caminhar pelo pátio e aprovou a mudança. “O pátio ficou todo pintado e os artistas brincam com a gente, tiram fotos e entregam para a gente. Agora temos o que observar, o que achar bonito.”
Visão dos artistas
Quem primeiro lançou seus traços em um dos muros mais altos do pátio foi a muralista Priscila Amoni, de 32 anos, que pintou uma mulher em oração. “Ela está com o alecrim na mão, que remete à alegria, e o comigo-ninguém-pode na cabeça, que diz sobre a força da mulher, dessa mulher em ascensão na sociedade.”
Amoni, cujo trabalho gira em torno da força feminina, se disse sensibilizada pela nova audiência. “Elas estão atrás de um muro aqui. Isso me toca muito como mulher, tenho compaixão pela situação delas e aprendo muito.”
As pinturas também ganharam forma na interação entre os artistas. Como no pássaro criado em um muro de quase 30 metros de largura e quatro de altura por Thiago Mazza, Gabriel Dias e Thiago Alvim.
“Cresci no interior e adoro passarinhos. Como o Dias também pinta passarinho, pensamos em colocar cada um em uma ponta no mesmo muro, mas não tínhamos nada planejado”, conta Mazza.
“O Mazza e o Dias resolveram pintar pássaros, mas (os trabalhos) estavam distantes entre si e minha pintura tem essa característica de ligação. Encontrei um meio de unir os painéis e matar essa vontade de pintarmos juntos”, complementa Alvim, de 28 anos.
Organizador da residência, Helder Cavalcante trabalha dando toques inusitados a pessoas comuns. Criou uma idosa voando com uma mochila tipo jetpack. “Brinquei que pode ser uma fada mais velha com problema na asa, mas que usa a mochila para continuar trabalhando. A imagem é só um ponto de partida para uma viagem de quem observa”, explica.
A arte nos muros foi pensada para ser vista também de fora do hospital – as obras nas partes mais altas são visíveis a quem passa pelas ruas e pela estação de metrô vizinha.
“A possibilidade de usar o máximo do espaço foi uma insistência minha. Fiz o esboço de dentro (do pátio) e pensei no que seria visto de fora. É disso que se trata, da arte vista como espaço”, detalha Helder.
Mudança de percepção
Para o fotógrafo Fernando Biagioni, de 33 anos, que registrou o processo, conhecer pacientes e perceber o estigma ainda existente em relação a instituições de saúde mental foi algo marcante.
“Quando cheguei aqui me surpreendi, porque temos um preconceito formado do que é um hospital psiquiátrico e não é nada do que a gente pensa. Estar aqui para ver isso foi necessário”, diz.
Com três meses de internação, a aposentada Valéria Silva, de 56 anos, disse que a iniciativa aproximou as pacientes. “Esse encontro é um momento de partilhar o que se sabe e isso é muito bonito.”
Ela passa alguns minutos observando as novas paredes para responder sobre as cores que mais chamaram sua atenção. “Laranja porque gosto muito de laranja. É meu suco predileto. E azul todo mundo gosta: estar no azul, ser o azul, banhar no azul.”
Para a diretora do hospital Luzmarina Morelo, de 53 anos, os muros continuam fisicamente no hospital, mas a convivência entre artistas e pacientes mostrou que essas paredes podem ser derrubadas.
“O muro é, na verdade, um obstáculo que colocamos na relação com outro. Acho que o muro foi rompido ali, nessa experiência de ter várias pessoas que não são da área da saúde convivendo com pacientes em crise”, reflete.
A psicóloga Cláudia Apgaua comemora a iniciativa. “Isso é convivência, respeito, deixar o paciente se vincular a pessoas em quem pode confiar. O tratamento se baseia muito nisso, estar com alguém que possa escutar e trazer essa reconexão com o humano que aconteceu aqui.”
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